Aqui estou, pasmo, não acreditava que naquele mesmo mar milhares de balas de canhões foram jogadas. Não acredito ainda do jeito que se renovou. Parece tão limpo, tão puro. Quem dera assim também fosse a humanidade. Ao contrário desse mar, nós só nos afundamos, como as âncoras dos navios, nos nossos próprios e infinitos devaneios.
Meu amigo me chamou, mas eu não ouvi. Os pássaros cantaram, mas eu também não ouvi. O único som que escutava e o único que queria escutar era da brisa que vinha em direção a meu rosto e me tocava suavemente como um carinho de mãe. Descobri que não podia fugir, a sensação irresistível. Me veio, então, um sentimento que hoje posso afirmar que é esperança. A de que um dia acordaremos e daremos a volta por cima. Assim todos poderão sentir em plenitude essa brisa que vem.
Diego Borges
Deparei-me com aquela igreja novamente. Mas não consigo conformar-me de que ela nos uniu e logo nos separou. Miguel era seu nome. Sempre estava com seu avental esculpindo barquinhos, pintando-os. Era dedicado e atencioso, nunca deixou de dizer que me amava… Pergunto-me sempre quando passo pela Igreja Matriz de Nossa Senhora dos Remédios, por que não curas minha alma? Permita-me abrir as correntes que me fixam ao solo. Deixe-me reencontrá-lo fechando, assim, minha ferida que a cada dia se aprofunda.
Tomei posse da loja de artesanatos, com a partida dele. Contudo, o único caminho que me possibilitava seguir a rotina, era passando por ela . A Igreja é enorme. Cada detalhe presente enriquece sua beleza e nossa cultura, pois nos fazem lembrar que seres humanos foram escravizados para que esta fosse erguida... Era frequentada por brancos na época. Os mais ricos eram enterrados próximos ao altar. Os pobres até na porta do monumento histórico.
E que história nós construímos naquele lugar! No dia de nosso casório, estávamos felizes demais. Realizamos a cerimônia emocionados dentro da igreja e logo fomos aproveitar a noite. Dançamos ciranda. As crianças corriam alegres pelas ruas irregulares pé de moleque. Tentavam escalar a grande palmeira que se igualava a ponta da igreja. Após muito festejarmos, fomos de carroça até a ponte onde fechamos um cadeado em sua lateral e jogamos a chave no rio.
Dezesseis anos se passaram e ele adoeceu. Até hoje suspeito que fora infectado ao voltar um dia da missa, onde as ruas se inundaram pela maré alta. Passei a ir por ele, todas as noite a missa. Estava me aprontando. Até que ele virou e me surpreendeu com o pedido de acompanhar-me. Não pude negar. O tempo todo não soltava minhas mãos. Mas ao fim da missa foi-se ao badalar dos sinos que ecoam, tan, tan, em minha cabeça. O abalo tornou-se parte de mim.
Meus sonhos nunca mais foram os mesmos. A imagem do grande sino, da magnífica igreja e a mão dele que nem forças tinha para mante-la sobre a minha… Insistem em permanecer comigo.
Miguel era religioso e frequentava a Igreja Matriz de Nossa Senhora dos Remédios todas as noites. POR QUE NOS SEPARARAM? POR QUE NÃO ME LEVASTES? A única coisa que pude fazer foi honrá-lo e marcar nossa história .Pedi para enterrá-lo na igreja. Como éramos de boa condição financeira, meu querido esposo foi posto no meio da igreja de Paraty em baixo do piso. Tornando-se o coração da igreja que pulsa em meu peito.
Luiza Paschoal.
Colocar as pernas cruzadas, se sentir confortável, e apenas observar, ouvir as folhas batendo umas nas outras, ver o mar conversando com os as ilhas, olhar as formigas ajudando umas às outras, ver o sol feliz transbordando calor com seus raios.
Não falar nada, apenas tirar a tampa com a mão suada, ver a tinta pedindo para ser usada, e escrever sobre aquele lugar, descrever a sua felicidade e saudades apenas em um desenho, e saber que talvez volte lá, mas nunca do mesmo jeito.
Agora, se sentir confortável em casa, mas nunca com a mesma sensação, sabendo que aquele lugar estará em Paraty, mas Paramim no coração
Lincoln Sant'anna.
Paraty, Paraty, o que conheço dessa cidade? Minha vida foi sempre baseada em defender a linda costa que é cercada pela mais belas coisas que já conheci: o mar. Meu destino era atirar bolas de metal pesadas, sem dó nem piedade. Lembro-me de bons momentos... o dia que acertei o casco de um navio que roubava nosso ouro. Naquela época, tinha privilégio. Estava em uma das melhores posições para acabar com os navios.
Depois olhar o pôr do sol a refletir sobre a água. Mas como tudo não é uma mar de rosas, Paraty também não era assim. Anos e Anos de pura precisão foram passando e eu não tinha me dado conta de que estava abandonado. Inertil. Sem minha principal função: proteger ao outro.
Com fortes chuvas e ventanias, cai no mar. Tudo havia acabado. A cada momento que me aprofundava, menos vontade de atirar sentia. Por um momento parei no solo, parecia que era realidade, estava 100% esquecido no profundo do mar que agora era obscuro. Só tive uma única opção. Esperar o que o destino tinha planejado. Sentia que uma reviravolta cairia sobre mim como uma luva. Humanos me resgataram daquele incerto fim. Agora, como voltaria a trabalhar, com peças enferrujadas e sem alguns anos de prática? Não voltei. Eles me colocaram em cima de um monte. Com o mar que já fazia parte de minha vida. E agora faz parte da História de Paraty.
Enzo Carvalho.
Adentramos à um casco de madeira. Apesar de seu peso material era conduzido levemente pelas águas transparentes que refletiam a luz do sol. Estava sentado. Olhando pra ela, tão linda!
O dia estava ensolarado. Mas com a falsa esperança de que o sol nasceria de novo amanhã. Tão brilhante, transpassando sua luz. Sua luz própria. Todos reconheciam. Ele tinha uma luz que todos sabiam quando o viam. Mas qual a minha luz e meu reconhecimento? Minha mente é um beco frio que chamo de “erro”. Tentando emergir de dentro do meu mar de pensamentos. Tão obscuros que nem a luz do sol os alcança.
Ela nem deve enxergar minha luz. Ela brilha tanto. Seu sorriso. Seus olhos.
Você não enxerga minha luz não é? Mas a do sol, tão brilhante e linda. Por que não observá-lo e admirá-lo?! Então me pergunto se o afeto foi em vão. Pois, no fim, tudo que me move, move apenas meu coração. Me pego dentro de um mar profundo e escuro. Novamente perdido em pensamentos. Vivendo em uma dimensão onde me sinto cego, nessa injustiça, que a vida causa sob nossa mente.
Gustavo Martins.
Há muito tempo atrás, fui construído por filhos de escravos. Estes só ganhavam comida se trabalhassem muito. Essa foi minha origem. Nasci em pleno século XVII.
Eu sou muito conhecido, porém a multidão mal me percebe.
Já escutei até as pessoas falarem “MEU DEUS!!!! Porque esse chão é assim?”. Me senti muito mal. As pessoas não podem dizer isso de mim. Ninguém é melhor que ninguém.Mas alguns seres são assim.
Muitas pessoas me chamam de pé de moleque outras de duro e assim vai os xingamentos.. Mas enfim, um dia eu ainda vou como vocês. Talvez em uma outra vida.
Júlia Souza.
Eu existo, estou aqui há muito tempo, vi essa cidade ser erguida com sangue de uns e o lucro de outros. Sou eu, aquele... você nem deve saber quem eu sou... aquele que você...deixa pra lá.
Gostava quando os olhos das crianças brilhavam ao ver minha imponência. Mas agora o máximo que fazem é tirar algumas fotos e depois continuarem seu caminho.
Sou um velho, às vezes, até me pinto. Mudo meu visual. Mas não deixo minha arquitetura de lado. Com as surras que o tempo já me deu, tenho muitas marcas, mas isso também não reparam. Já tentei me machucar, tirar uma janela, só para tentar ver de novo aquele sorriso das pessoas quando me viam.
Ontem, alguns homens vieram arrumar algumas rachaduras. Eu não queria! Eu gritava, mas ninguém me ouvia. Dei meu último suspiro, cai. Tomara que ao menos dessa vez venham me ver.
Pedro Morani.
Eu já estou aqui há muito tempo. Já ví várias pessoas indo e vindo, comprando e vendendo. Morrendo e nascendo. Felizes e tristes. Mas com o passar dos anos as pessoas deixavam de vender suas mercadorias. Iam, mas não voltavam. Os que nasciam me deixavam, e os que já moravam aqui, morriam.
Só sobrou a tristeza.
Só havia poucas pessoas. Será que eu fiquei perdido no tempo? Alguém ainda irá me visitar?
Sinto que querem coisas novas. Eu sou velho, não me encaixo nos padrões atuais.
Eu não quero ser chamado dessa “história” que todos pensam, sem valor e velha, mas uma história com encantos, que ensina.
Ainda espero que um dia a história vire algo mais do que simples acontecimentos do passado. A história é presente, em seus dois sentidos! Há o lugar da história... mas até lá eu continuarei esquecido, carregando todas essas histórias, mas sem ninguém para contar.
Mauro Idehama.
Já se passaram muitos anos. Há muitos que eu observo diversos lugares, diferentes países e culturas, mas continuo me encantando com essa cidade.
Sua história, tudo o que se passou por ela... lembro-me quando aqui era o lugar mais brilhante do mundo, faz um bom tempo. Era chamado de caminho do ouro, eu me lembro bem, pois toda a vez que passava por aqui tinha um movimento, no mar e na terra.
É muito linda, mas algumas histórias nem tanto! Os humanos são capazes de tanta coisa… Tanta coisa ruim que eu nem consigo imaginar... essa cidade que é tão bela, passou por muitas impurezas. Mas não há lugar perfeito. E vou continuar passando por aqui, sei que é desnecessário, mas amo essa história. Podia parar de passar, cortar um caminho e descansar mais tempo, mas olhar esse mar e pensar é tão bom...
O lugar é muito iluminado, suas histórias, tudo o que sofreu e resistiu, acho que já deu. Já deu de passar aqui. Já deu de iluminar o que é muito iluminado, é como se alguém pegasse uma lanterna pra me dar luz... bem eu, que dou a luz de dia e descanso de noite, o Sol.
Ricardo Sakugawa.
Às vezes, fico um pouco sozinho. Então vou para perto de vocês, porém nunca gostam: sempre reclamam que molho seus móveis e estrago suas roupas. Chegaram até a construir uma cidade inteira pensando nisso, com as portas altas e ruas em formato côncavo.
Às vezes gostam de mim e vêm para nadar, ou apenas ficar me olhando. Alguns até deslizam sobre minhas ondas em pedaços de Poliéster ou Poliestireno.
Há apenas um problema nisso… estou começando a ser ultrapassado, pois não consigo mudar. Durante todos os anos em que estive aqui (uns 3,8 bilhões de anos ) nunca mudei drasticamente. Sinto que estão começando a enjoar de mim.
Ainda bem que a cada momento que passa surgem pessoas novas. Sei que sempre terá alguém, mesmo que não seja tão interessante quanto da primeira vez, se divertindo ao pegar uma prainha no final de semana.
Vittorio Belinelo.
Sempre solitária, debaixo desse sol escaldante, com a brisa do mar batendo em minhas folhas. Observo as pessoas, as ondas do mar quebrando...Ouço as conversas e histórias da magnífica cidade de Paraty.
Queria um pouco de atenção, porém os olhos das pessoas só dão atenção para as ruas irregulares e às construções. Queria poder ser visto pelo mundo. Nenhum visitante que por aqui passa deixa de fazer as coisas que tem que fazer para me observar, me dar um pingo de esperança.
Foi em mais um dia de sol escaldante que um pequeno menino se perdeu de seus pais. Veio ao meu tronco chorar. Aquele sentimento triste, solitário… se parecia com o meu. Querendo alguém para acolher no colo e cuidar. Sentia o seu pequeno coração batendo desesperado. Ele estava com medo desse mundo tão sombrio.
Quando seus pais o acharam foi correndo para os seus braços. A esperança de ter uma pessoas que me amasse foi embora. Comecei a entrar em uma forte crise, minhas folhas secaram, começaram a cair e meu troco apodrecer.
Para a minha surpresa, as lágrimas do menino fizeram nascerm uma pequena flor ao meu lado. Fez meu tronco podre ressurgir. Daquele dia em diante nunca mais estaria sozinho.
Théo Álan e Camille Ruotolo.
Como esquecer de todas as histórias que ouvi enquanto passavam e olhavam para mim. Já ouvi brigas e reconciliações, pedidos de casamento e términos de namoro. Também já ouvi várias histórias sobre a minha cidade, histórias em que eu fui mencionado e elogiado, mas que traziam horrores que Paraty já tinha causado.
Já me senti ofendido e lisonjeado por pessoas que nem conheciam minha cultura e meu passado.
A cultura da nossa cidade deixou muitas revoltas, dores, cicatrizes e marcas em nosso povo e na estrutura da cidade. Prova disso são as ruas, que foram construídas com o sangue e o suor dos nossos escravos.
Eu, o céu, pude presenciar de tudo, tudo que se pode imaginar, tudo de bom e de ruim. Eu não tenho fim, vou ficar aqui, para sempre, sempre vendo as belezas e as maldades dessa cidade.
Eu vivo no chão, pessoas passavam por mim, até carroças. Quando chove eu me afogo nas enchentes de maré alta.
Queria visitar lugares, poder tirar as minhas próprias fotos e não aparecer nas fotos alheias.
Queria vender minha arte e ser independente. Mas sei que sem mim, ninguém poderia ir a lugar algum.
Guilherme Antônio.
Eu estava sozinho e triste naquela noite, ninguém queria estar comigo, algumas pessoas dizem que é difícil andar em mim. Já ouvi me chamarem de pé de moleque e outros falarem que sou a Rua Dona Geralda. Que nome mais esquisito! Sempre sonhei em ter um nome, mas as pessoas me ignoram. Eu sou bem longo, vou de uma ponta à outra, meus braços são chamados de esquinas algumas vezes, não sei por que. Fui colocado bem na época dos escravos, com dor, sofrimento e sangue.
Nunca fui igual aos outros, sobre mim não passa carro. Só carroças. Fui planejado para isso, para me preservar, para não ser destruído ao longo do tempo. Às vezes eu fico coberto de água, mas isso nunca me incomodou, minha estrutura foi feita para isso. Uma coisa que nunca mudou em mim é o fato de eu estar sempre na mesma posição, desde o meu primeiro ano de vida.
Já faz uma semana que não passam por aqui, já estou desesperado… E se mais ninguém andar sobre mim? O que vou fazer? Não tenho como me mexer, apenas esperar alguém me notar.
Até que senti alguém vindo em minha direção. Alívio de ponta a ponta! Melhor sensação dos meus longos anos de vida.
Percebi que eu tenho uma história. Sou antigo, conheci várias pessoas e escravos que hoje fazem parte da história de Paraty,
Marina Bock e Read Vilela.
As pessoas não me reconhecem, fui feito no século XVII, por escravos, naquela época fui feito com muita dor. Esse foi o melhor que puderam fazer, naquelas condições. Já ouvi algumas pessoas me chamando de pé de moleque, outras só falam que sou duro.
Algumas pessoas não conseguem ver o esforço. Posso ser diferente, mas não pior. Já me importei com o que achavam de mim, mas ninguém é melhor que ninguém.
Muitas das vezes, não merecia os xingamentos. Guardei cada coisa que já ouvi. Mas hoje, só sou diferente. Não melhor. Nem pior. Só diferente.
Maria Eduarda Vieira.